Lançado em 16 de setembro, Novo Testamento marca um ponto alto na trajetória da artista nascida em Mogi das Cruzes (SP). Com 11 faixas que transitam entre boombap, trap, R&B e até drill com funk, o disco é um mergulho profundo na identidade de AJULIACOSTA enquanto MC e pensadora da cena. Cercada por uma equipe de peso com nomes como Murillo e LT no Beat, Maffalda, Nave, Greezy, DJ KLJay, Alt Niss, Cheek, Galdino, Mathinvoker, Xizoh e Mu54O, a rapper mostra não apenas versatilidade, mas também o controle criativo de quem sabe aonde quer chegar.
O álbum abre com uma introdução provocativa: múltiplas vozes questionam o que seria esse “novo testamento”. A partir daí, AJULIACOSTA assume a narrativa e não poupa críticas. A segunda faixa, em um boombap clássico, já chega cobrando responsabilidade de MCs que “abandonam seus filhos” e abandonam também a essência do rap. É a primeira de muitas reflexões que permeiam o disco, onde o microfone vira ferramenta de denúncia, mas também de autodefinição.
Na sequência, o trap melódico produzido por Greezy eleva a intensidade, expondo relações frágeis, interesses mascarados e a superficialidade de artistas que se tornam “fantoches do entretenimento”. A crítica é afiada, direcionada tanto a rappers quanto a figuras dos bastidores sedentas por fama. Essa postura de enfrentamento é equilibrada por faixas mais íntimas, como a parceria com DJ KLJay em um boombap robusto sobre relacionamentos abusivos. Entre scratches e versos poderosos, a rapper ressignifica a dor ao afirmar: “pode ir embora filho, eu fico comigo”, trazendo ainda o conceito de Dharma como guia de reconstrução pessoal.
O boombap segue sendo território fértil para AJULIACOSTA refletir sobre sua própria identidade artística, questionando o lugar que ocupará na cena. Sem medo de apontar o racismo estrutural e as armadilhas do mercado, ela deixa claro que não está disposta a se vender pelo caminho mais fácil. Do outro lado, os traps pesados lembram que ainda há uma multidão de artistas entregando trends sem profundidade, reforçando o contraste entre o efêmero e o consistente. O R&B romântico com Alt Niss abre espaço para suavidade, mas não abandona a autenticidade que guia todo o projeto.
Entre momentos densos e mais leves, surgem questionamentos existenciais, como em Acorde, que talvez seja a faixa mais impactante do álbum. Nela, AJULIACOSTA desafia o ouvinte a repensar o que é arte, para onde vamos e por que aceitamos consumir o raso em vez do essencial. Até o interlúdio Mini Saia cumpre a função de provocar, antes de retomar a firmeza com versos que ecoam a herança do rap nacional: “busque sua referência, faça bem sua pesquisa, mesmo que na merda pense como uma diva”, apontando a ausência de vozes femininas em momentos históricos da cultura.
O encerramento não poderia ser menos explosivo: um drill com funk produzido por Mu54O, em que a rapper reafirma sua escolha por si mesma “quando eu me escolhi deixei pra trás a minha incerteza”. Essa síntese traduz o espírito de Novo Testamento: um trabalho maduro, que prefere a coerência aos atalhos e aposta no rap como espaço de questionamento e transformação. AJULIACOSTA não entrega apenas um disco, mas um manifesto de valores e intenções.
por Rodrigo Falchioni
